2016-09-15







PENSAMENTOS DE UM MÉDICO – 2


As novas gerações têm de pagar...?

Francisco Crespo
(*)

F
iquei a pensar numa afirmação que oiço frequentemente, mais ou menos… "as novas gerações terão de pagar o que a dos velhos consumiu". De facto, a minha geração deixa um legado deveras importante; por um lado conseguiu com muita dificuldade lutar contra uma ditadura (muito forte...), adquirir o hábito do debate, a exigência da qualificação, o espírito de investigação; criámos em Medicina a obrigatoriedade de dois anos de prática médica tutelada por mais velhos, para sermos licenciados, a par de sobrevivemos com ordenados baixíssimos (eu paguei sempre as contas de energia e água com multas, por atrasos durante anos).

Cem Escudos - foram à vida...



L
embro-me que pagava 1110 escudos de renda e ganhava 750 escudos. Trabalhava no Hospital Sta. Maria com horário das 9 às 13 e fazia 24 horas de urgência semanal de borla e sem descanso, para refazer o horário. Mas como não conseguia fazer o trabalho e investigação, saía sempre depois das cinco da tarde (eu é que fechava o Serviço, pois os
técnicos saíam às cinco) e quando fiz investigação sobre as plaquetas ia, alguns dias depois disso, a Santarém buscar um coelho e passava a noite na Farmacologia até às oito da manhã, ia a casa tomar duche e voltava ao hospital e não tinha nenhuma bolsa, mas um prazer enorme.


A
ssim publiquei o primeiro trabalho mundial, clínico/laboratorial sobre uso de baixas doses de AAS na profilaxia das tromboses arteriais. A nossa geração deu a volta a uma paz cinzenta, podre e agrilhoada, mudámos muito a sociedade e nunca ficámos à espera de soluções caídas do céu. Tive a sorte de nunca ser preso, mas houve muitos que foram presos e mortos. Tudo o que tive foi do meu trabalho, excepto a casa de Torres - que fiz com o dinheiro que meu pai me legou por morte.


T
ive de ir trabalhar com meu pai no consultório e vender análises tipo supermercado, pois o ordenado do hospital não dava para educar as quatro filhas. Não deixei nenhuns encargos aos mais novos. Vivi com muito gosto. Relembrar estes factos, é porque a minha geração não era diferente das juventudes de sempre, incluindo as de hoje (os jovens é que mudam o mundo), mas os tempos foram difíceis, criámos as carreiras médicas, fizemos investigação cientifica, o SNS, reduzimos o analfabetismo, conquistámos a liberdade, o respeito solidário com todos, isso não foi obra de milagre, foi de quem trabalhou e mudou radicalmente o curso da ditadura.

Reunião da JUC


Q
uando casei, nunca me vou esquecer das palavras do Bispo (que me fez chorar): "eu conheço o Francisco, que nunca pactuará com a mediocridade". Hoje sou ateu. Mas essa exigência (nunca mais esqueço), foi ele que ma transmitiu e a todos os que passaram na Juventude Universitária Católica... não foi de geração espontânea ou mérito meu. Durante a Faculdade, fui em simultaneidade presidente da JUC de Medicina - dois anos, redactor do Jornal Encontro, durante três anos, dirigente do Centro Cultural de Cinema, um dos responsáveis pela secção pedagógica da PRÓ Associação de Medicina, responsável pelo Ninho contra a prostituição…- até ter uma ulcera por não dormir...
 
Sem legenda...

O
 drama são os encargos que certos corruptos políticos nos deixaram a todos velhos e jovens e de todos os partidos (Sócrates, Dias Loureiro, Oliveira e Costa, Isaltino, Duarte Lima, Cavaco, PR da Áustria, Sarkozi, por esse mundo fora ...); estamos lixados, mais o legado do ditador Salazar que não sendo corrupto nos deixou o analfabetismo, a incultura, a guerra colonial evitável com o diálogo e independências, que teriam permitido o convívio mantido com todos brancos e pretos. Quanto não perdemos todos com a guerra, vidas, economia, dinheiro em armas, para nada?


F
oi para mim muito útil estudar em casa dos meus pais com colegas de engenharia, económicas, direito, arquitectura ..., o que gerou reflexões e conversas nos intervalos do lanche. Foi assim surgindo no meu pensamento a ideia alargada do conhecimento sem limites e do que é minha Pátria, o mundo inteiro, mas a com a nossa língua o português. Ao verificar em Sta. Maria que não podia fazer investigação sem recurso a equipamentos ausentes, pensei ir para arquitectura, não era aos 50 anos que iria fazer investigação! Surgiu nessa altura um convite para o Hospital Santa Cruz.

Hospital Santa Cruz


A

í com uma equipa espantosa que criei (ninguém deve ser chefe sem criar equipa que tenha liberdade criativa, que perdure para além da nossa reforma) organizei "o melhor Serviço de Patologia Clínica do país", (disse a Ministra da Saúde).  Nunca mais larguei esta arte/ciência da medicina que adoro e só tenho pena de já não conseguir acabar nos anos que me restam, os projectos que no dia a dia me obrigam a acertos da minha ignorância perante a diferença das certezas, que tinha aos quinze anos.

C
om este acerto permanente do pensamento que nunca podemos ignorar, reflectindo sobre as muitas matrizes que a história dos pensadores nos legaram, mas que têm que ser recentradas dia a dia, com inteligência. Se não estivermos abertos às inovações diárias, ficamos como o Velho do Restelo... Para este caminhar muito contribuiu a família que me deu formação e sentido da vida, queridos avós, pais, tios, irmãos e primos. Acresce os excelentes professores e colegas do liceu Camões, com quem continuei a conviver. (em casa da antiga professora de português, com José Régio, Branquinho da Fonseca, Hernâni Cidade, Vitorino Nemésio,
Miguel Torga (busto)
Miguel Torga...) e o distinto pedagogo, matemático, democrata Dr. António Lobo Vilela, meu professor e amigo. E ainda o Dr. António Reis Rodrigues, depois Bispo, que me casou.


D
eixámos problemas às novas gerações? Com certeza, mas para elas continuarem a renovar. Eles que se interroguem com o que mudámos. Eles que sejam os juízes.


(Médico)


1/10/2013