2016-11-02


Drogado
jovem
ou jovem
drogado

Antunes Ferreira


O
rgulhosamente usa no toldo e na parede o nome oficial registado em tudo o que é sitio e papel municipal e da freguesia Retiro do Meio Cheio (num bold corpo 260 bold) –Restaurante – Bar (num itálico corpo 150 bold).Como se vai tornando obrigatório a entrada de cães no estabelecimento é rigorosamente proibida; o mesmo já não acontece com a caca canídea que se conserva per omnia secula seculorum à frente da sua porta de acesso. Quem sabe destas coisas de negritos e cursivos é o Viriato Malaquias, antigo tipógrafo no “Jornal da Tarde”; e a malta que por lá abanca, reformados, desempregados, biscateiros ou trabalhadores diversos na hora do almoço e cidadãos inócuos que vêm pela bica, com cheirinho, ouve-o dissertar sobre composições, tipos, corpos, tituleiras, chumbos e até sangue-de-cristo; para além do offset. E aqui para no limiar da fronteira da desconhecida informática. Assim a modos como o cabo das Tormentas. E o Viriato não é o Bartolomeu; tem dias.


L
inguagem um tanto a dar para o arrevesado, hermética como dizem na televisão quando falam economistas e financeiros, além do Jorge Jesus, lá está o Malaquias para passar tudo a Português. Boa! Entretanto é preciso que se diga que tão pomposo nome traduz-se facilmente: é um tasco – mas onde se come muito bem. A Dona Filomena é mãe e cozinheira o Segismundo é o filho e atende os clientes quer dentro do balcão quer fora do mesmo. Enfim, para usar a língua Asaeana uma pme familiar. Sem subsídios. Na parede do fundo há um local especial para anúncios: HOJE HÁ CARACÓIS;
Sem legenda
AMANHÃ COZIDO À PORTUGUESA; 6. FEIRA BACALHAU COM GRÃO
etc. Menus diversos para todos os gostos e paladares.



A
 Dona Filomena na classificação geral dos cozinhados está muitos furos acima da santa do mesmo nome que, de resto, deu origem a uma tremenda controvérsia chegando mesmo a dizer-se que “a Filomena já não é santa”. Ironias do destino? Sabe-se lá. O que é certo é a santa afinal venceu a final e para mal dos seus detractores continuou na primeira liga celestial. No entanto, no que toca a refogados, rissóis e empadões nada consta a seu respeito. Que foi virgem – parece-me sim, o que, aliás, não é grande feito pois todas as mulheres o foram, mesmo Maria de Nazaré, ainda que subsistam umas pequenas dúvidas sobre um tal Espírito Santo. Até hoje não esclarecidas.


C
om isto se quer dizer que a insigne Dona Filomena, (viúva e dona de buço que qualquer guarda republicano invejaria) faz parte no mínimo o top ten das chef’’as lusitanas, para não dizer mesmo do top five. O seu cozido à portuguesa, a sua feijoada à transmontana, o seu bacalhau espiritual, as suas cabidelas, os seus pezinhos de porco com coentrada, os seus botelos com couves cozidas e os seus doces elevam-na à enésima essência, à vigésima segunda nuvem gastronómica-celestial, à direita de quem entra no portão guardado pelo São Pedro. E, se alguém de lá saísse (o que não consta de qualquer registo ou acta) seria à esquerda. Curioso.


P
elas quatro da tarde, abandonado pelo maralhal o local gastronomicamente abençoado, reúne-se ali uma tertúlia de três senhoras idosas, por vezes quatro. Ouvi-las conversar, recordar momentos passados, bons e maus, é um verdadeiro refrigério, dir-se-ia mesmo um privilégio, para os atrasados consumidores de sandes e minis ou tinto gelado. Que, por vezes, aceites pelas tertulianas, também metem umas buchas da autoria deles, pensando que com tal procedimento enriquecem a temática do dia. O que não corresponde à esperança dos recém metedores de colheres; cortar nas casacas tem que se lhe diga. E especialistas são… especialistas.
Para quê legenda? O texto diz tudo


O
ntem a Dona Alzira que tem uma voz de baixo-baixíssimo, 78, e é também viúva contava a sua história numa linguagem mais do vernácula, com o calão à mistura, informando as comparsas que com ela eram nove irmãos, a mais velha com catorze anos e o mais novo com quatro meses. Viviam num palheiro, ali a Carviçais, aldeia de Moncorvo, onde era preciso ir buscar água à fonte que ficava a dois quilómetros mais coisa menos coisa; no Inverno e descalços era fodido. Ela por essas alturas devia andar pelos seus sete/oito anos e nunca fora à escola.


O
 pai, farto da esmola que ganhava nas minas, cavara a salto para Paris da França, depois de ter emprenhado a mulher mais uma vez; hábitos. Côdea - pouca. Couves tronchudas – poucas. Chouriças – duas por ano. Caldo – quase todos os dias. Mal por mal a mãe Deolinda decidira ir para Lisboa, terra da perdição, mas também do mel e dos bifes. Ouçam meninas (a assistente mais velha ostenta sem aparato 92, quase 93 que vai fazer no princípio de Dezembro) foram nove dias à pata, felizmente que era Verão, dormindo ao relento, onde e quando calhava.


A
 minha mãe tinha um tio que morava numa rua chamada Filipe da Mata que deixou a gente ficar no pátio que havia nas traseiras e aos poucos fomos saindo para lugares que o tio e os primos seus filhos nos arranjavam. Eu, que já tinha fito nove anos, fui parar à casa de um Senhor Doutor Deputado, para cuidar das duas filhinhas e dos dois filhinhos que ele e a sua mulher tinham. Tudo gente muito católica, todos os domingos iam à missa e comungavam. E eu passei a ir com eles.
Entre mil beijos e carícias....


T
inham passado uns quatro anos, já me haviam aparecido as regras e crescido as mamas, estava uma mulherzinha, já me olhava ao espelho, não era bonita mas bem feitinha, fora promovida a criada de fora e preparava-me para ser ajudanta de cozinheira, quando uma noite, ouvi que de mansinho  abriam a porta do meu pequeno quarto no vão da escada. Era o patrão que me disse chiu e despiu o pijama mostrando-me uma coisa enorme e tesa que tinha entre as pernas e… entre mil beijos e carícias tirou-me os três vinténs.


E
ntretanto tinham entrado no tasco uns fulanos que pelos fatos que usavam carregados de tintas e de pó de cimento e de tijolos deviam ser pedreiros, pintores, estucadores ou coisas assim da construção civil (que aos poucos ia ressuscitando), que tinham pedido umas imperiais e uns tremoços.  Nesse momento um jovem desempregado profissional, drogado até dizer chega não, que por ali entretinha os seus ócios lendo o Correio da Manhã ou jogando no seu Smartfone, soltou, lá do fundo da pequena sala uma gargalhadinhas sacana: “Ó Alzirinha, nessa altura ainda havia os três?...” E um dos que acabavam de chegar, no mais puro alentejanês: “Havia, mê cabrão que te parto os cornos! Havia e há!” O puto drogado (a ordem dos factores é arbitrária), levantou-se, empertigou-se “É pá, se és homem, repete lá essa merda!” E avançou de punhos em riste! O campomaiorense fez-lhe uma chicuelina, e ferrou-lhe três murros nas trombas
Acabou-se - a festa e o gandulo
que o gajo até saiu de gatas. Nem apanhou os dentes partidos, muitos e espalhados pelo chão, e ainda rosnou “isto não fica assimmm…” O matulão de Castro Maior “pois nã, mê filho duma carrada de putas!” E foi-se a ele, levantou-o deu-lhe um enxurro de porrada que acabou com um pontapé ao fundo das calças, depois de outro mesmo em cima da braguilha. Acabou-se – a festa e o gandulo. À esquina a autoridade fardada de polícia, impávida e serena, falava pelo telélé quiçá para a namorada, ou para o namorado. 



“O
brigado meu Senhor…” disse a Dona Alzira com a voz entaramelada. “Nã tem de quê minha Senhora.” E voltando-se para o Segismundo: “Sai mais um pastel de nata para a Senhora Dona Alzira. Com açúcar e canela.”