2018-02-18

A Roda dos carretos





Antunes Ferreira


O cajado de sobreiro 

seguro pelas mãos nodosas serve-

lhe de apoio  enquanto sentado 

num bando de madeira, mirando o

horizonte infindo  e pensando 

nos ciclistas. Mestre Jacinto tem 83

anos, foi  corticeiro, hoje não faz nada, apenas recebe um auxílio 

da Misericórdia de Beja, uns míseros quinhentos paus, tudo o que 

lhe resta é a memória. Como esta agora, a dos ciclistas. Já não tem

pernas para os ver passar à bêra da estrada por isso fica pensando

que os está vendo curvados cobre o volante dobrando a curva da

Cortegaça que é sempre a subir. 


E vai recordando. Vai práí uns bons cinquentas e tais anos, tinha 

ele vinte e seis, ou seriam vinte e sete? e já tinha quatro catraias e 

dois moços tinha ido vê-los  passar exactamente naquela curva, o 

Trindade um lagartão de merda ia à frente do pelotão, de resto o 

gajo ia ganhara volta era o ano de mil novecentos e trinta e

quatro, uma porra, pois ele, Jacinto Marques Milhariço era, sempre

fora do Benfica,  valia-lhe o Nicolau, águia dos quatro costados, 

um gigante que ganhara três voltas, enquanto o magricelas do 
Nicolau e Trindade eram amigos

Trindade só ganhara duas! Mas, valias-

lhes isso: eram da mesma terra, o Cartaxo 

eram amigos.


Ah, bons tempos eram aqueles, os anos trintas, a sua Guida, 

dera-he oito rebentos, cinco miúdas e três ganapos, agora todos 

fora do monte, menos a Judite que ali ficara para tia solteirona para 

o acompanhar, não fazia cá falta nenhuma. O Maneli fora-se à tropa

para Lisboa e por lá ficara diziam-lhe que era padêro, nunca mais 

voltara, o Jacinto viera só três vezes, estava estabelecido de

 merceeiro em Mafra, que ele nem sabia onde ficava, e os outros 

andavam por aí espalhados, só soubera que a Lurdes estava de 

porteira em Paris da França e a Maria da Luz era criada na Suíça.  


O padre Francisco prior da freguesia de Beringel (ele não 

gostava mesmo nada de padres nem de igrejas até de papas e

quejandos) mas o gajo contava-lhe  estórias do arco-da-velha que o

entretinham por exemplo sobre o ciclismo. Para o que lhe havia de 

dar. O padreca sentado ao borralho (vinha visitá-lo pela entrada da 

noite e ele mais a Judie ficavam a ouvi-lo) e começa normalmente 

assim: que tinha lido na biblioteca e explicava que a bicicleta era 

um “bicho” que alguns escritores diziam que tinha sido inventado

por um senhor italiano, Leonardo da Vinci,
Leonardo da Vinci
um 

homem dos sete-ofícios, que vivera nos anos 

de 1440 a 1500 mais coisa menos coisa e que 

pintara um quadro chamado Gioconda.



Enfim, o sacerdote sabia muito e perante o espanto dele e da 

filha, de boca aberta, o cura dissera que voltaria no dia seguinte 

para explicar tudo, o que, de facto,  acontecera. Acrescentara, que 

outras pessoas estavam envolvidas na história do ciclismo. Na 

Alemanha, em 1680, o senhor Stephan Farffler, construtor de

relógios, projectou e construiu umas cadeiras de rodas que 

avançavam com manivelas mexidas às mãos e depois um  tal barão

von Drais, também alemão, foi considerado o verdadeiro inventor

da bicicleta.  O padre Francisco contava a história “a galope”

noite apos noite e eles escutavam-no percebendo-o cada vez

melhor.

Celerífero


Desenhou e construiu um brinquedo a que chamou 

celerífero, que depois foi desenvolvido pelo Conde de Sivrac em 

1780. O celerífero fora construído em madeira com duas rodas e 

destinava-se apenas a tracção utilizando-se apenas os pés enquanto

“velocipedista” se colocava na viga de madeira. Drais instalou

nele um sistema de direcção – o guidão – que permitia fazer curvas

e com isto manter o equilíbrio da bicicleta quando em movimento

 e também um rudimentar sistema de travagem.


O sucesso foi enorme, Drais fez a patente do invento; mas, 

todo o bem se acaba. Depois de ter apresentado o seu invento em 

Paris e outras capitais europeias e de ter completado o trajecto 

Baden-Paris, o produto não consegui tornar-se popular e o barão 

foi ridicularizado e faliu. Mas estava-se em pleno século das 

revoluções industriais e científicas como foi o século XIX, e por 

melhorada. Poucos anos se passaram, após o registo de Drais, e 

veículo foi apresentado com uma estrutura de ferro e também 

recebeu uma sela, melhorando em resistência e conforto. No dia 20 

de Abril de 1829 aconteceu a primeira  competição que se tem 

conhecimento utilizando-se o veículo de duas rodas da época. 

Neste dia, competiram 26 draisianas percorrendo 5 quilómetros 

dentro da cidade de Munique.

Rodas desiguais


Note-se que os velocípedes do início 

da segunda metade do século XIX tinham 

os pedais fixos ao eixo da roda da frente 

que era, portanto,  simultaneamente motora

 e directriz. A velocidade de deslocamento dependia 

exclusivamente da aceleração rotativa dos pedais e o desejo de 

obter maior rendimento levou os construtores procurar um 

recurso que favorecesse a acção  mecânica do velocipedista. A 

solução mais fácil foi o aumento do diâmetro da roda motora,

levando ao aparecimento, em 1874, da "grande bi" ou "biciclo", 

com rodas desiguais, ou seja, uma que atingia um diâmetro de um 

metro e meio e a de trás reduzida ao mínimo necessário para 

garantir o equilíbrio.


A partir da década de 1870, os progressos foram rápidos e 

consecutivos. Em 1877 os pedais passaram a funcionar na base do 

quadro, presos a uma engrenagem dentada que uma corrente ligava 

ao eixo da roda traseira por intermédio doutra engrenagem de 

menor número de dentes (um sistema on-line de transmissão), 

assegurando assim, a multiplicação variável conforme as 

dimensões relativas das duas engrenagens, a roda de carretos..


Em 1890 aparecia, na Inglaterra, um aparelho chamado 

"cripto", cujas principais alterações consistiam na presença de 

rolamentos sobre esferas nos pedais e na aplicação de câmaras-de-

ar às rodas, pois antes, as rodas dos velocípedes não passavam de 

aro metálico ou de madeira, recoberto, em sua periferia, de 

borracha maciça destinada a amortecer os choques e ressaltos nos 

acidentes do caminho. A roda tubular em borracha com uma 

"alma" contendo ar comprimido foi uma invenção do 

veterinário escocês Dunlop.

Trindade

Ti Jacinto levanta-se, está na hora da janta,

na aldeia, ouvem- se na aldeia os sinos a dobrar, 

encaminha-se a passos pesados para a casa térrea e 

continua a recordar aquela vez em que Trindade 

teve um furo e ao descer da bicicleta para tirar a bomba para 

encher o pneu, os outros que o perseguiam caíram todos em cima 

dele e da bicicleta e os papalvos que assistiam à chegada na meta 

desataram a rir em gargalhadas altas, loucas e roucas! Os 

parvalhões! As bestas! Os filhos da puta!!!. Quem dera que fossem

eles a levar com os ciclistas em cima e que lhes partissem os 

cornos! Felizmente não houve vítimas.